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Por Que Aquele Funcionário ‘Faz-Tudo’ Pode te Processar Amanhã

Quando acontece desvio de função

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Todo empresário conhece esse funcionário: é aquele colaborador dedicado que “quebra galhos”, que está sempre disposto a ajudar em qualquer setor e que parece resolver qualquer problema. O vendedor que opera o caixa quando precisa, a recepcionista que ajuda no financeiro, o auxiliar administrativo que dá uma força no estoque. À primeira vista, essa flexibilidade parece uma bênção para qualquer empresa.

Mas aqui está a armadilha que muitos empresários não percebem: essa prática aparentemente inofensiva pode se transformar em um passivo trabalhista milionário da noite para o dia. O que você chama de “jogo de cintura” e “espírito de equipe”, a Justiça do Trabalho pode classificar como desvio de função, uma infração trabalhista que pode resultar em processos custosos, pagamento de diferenças salariais retroativas e até indenizações por dano moral. Neste artigo, vamos mostrar exatamente quando essa flexibilidade se torna um risco legal e como proteger sua empresa sem perder a agilidade operacional.

O Que É Desvio de Função: Quando o “Jeitinho” Vira Problema Legal

O desvio de função ocorre quando o trabalhador executa atividades diferentes das previstas em seu contrato de trabalho de forma habitual, sem o devido ajuste contratual ou compensação salarial. A diferença crucial entre um “favor esporádico” e um desvio de função está na habitualidade e na natureza das atividades exercidas.

Para entender melhor, imagine esta situação: você contratou João como vendedor, mas devido à demanda do dia a dia, ele começou a operar o caixa da loja regularmente. Mesmo que João aceite essa mudança de boa vontade, juridicamente ele está exercendo funções de um cargo diferente (operador de caixa) sem receber a remuneração correspondente a essa nova responsabilidade. Isso caracteriza desvio de função, independentemente da concordância dele.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) trata essa questão no artigo 468, que estabelece que qualquer alteração nas condições do contrato de trabalho deve ter concordância mútua entre empregador e empregado, e não pode acarretar prejuízos ao trabalhador. Quando você muda as funções de um funcionário sem ajustar seu contrato e salário, está descumprindo essa regra legal.

A jurisprudência trabalhista reforça constantemente essa interpretação. Os tribunais entendem que o empregado tem direito a receber remuneração compatível com as funções que efetivamente exerce, não apenas com aquelas que constam em seu contrato original. Isso significa que aquele funcionário “faz-tudo” que hoje parece uma solução prática, amanhã pode se tornar uma dor de cabeça jurídica significativa.

O ponto crítico é compreender que a boa vontade do funcionário ou a necessidade operacional da empresa não são justificativas legais válidas para o desvio de função. A lei protege o trabalhador contra mudanças unilaterais que possam prejudicá-lo, mesmo que ele inicialmente concorde com a situação.

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QUando é Considerado Desvio de Função: Por Que Essa Prática É Perigosa

Na prática, o desvio de função acontece de forma sutil e aparentemente natural no dia a dia das empresas. O vendedor que “dá uma ajuda” no estoque, a secretária que assume tarefas de recursos humanos, o auxiliar administrativo que opera sistemas de contabilidade, situações que começam como soluções temporárias e se tornam rotina permanente.

O grande perigo está na percepção equivocada de que essas mudanças são benefícios para o funcionário, uma forma de “ampliar experiência” ou “desenvolver novas habilidades”. Na realidade, quando um colaborador assume responsabilidades de um cargo superior ou diferente sem a devida compensação, ele está sendo prejudicado financeiramente, mesmo que não perceba imediatamente.

Considere este outro exemplo: uma empresa contrata uma recepcionista por R$ 1.400 mensais, mas gradualmente ela passa a controlar a agenda de todos os diretores, gerenciar fornecedores e coordenar reuniões, funções típicas de uma assistente executiva, cargo que no mercado recebe entre R$ 2.500 a R$ 4.000. A diferença salarial acumulada ao longo dos anos pode resultar em uma indenização substancial.

A situação se agrava quando a empresa desenvolve dependência operacional desse funcionário multifuncional. Quanto mais essencial ele se torna em atividades fora de sua função original, maior será o passivo trabalhista caso ele decida reivindicar seus direitos. E aqui está um ponto crucial: o funcionário pode permanecer anos exercendo essas funções adicionais e depois entrar com ação trabalhista pleiteando todas as diferenças retroativas desde o início do desvio.

A Justiça do Trabalho não considera a “boa vontade” ou “flexibilidade” do funcionário como fatores que invalidem seu direito à remuneração adequada. Pelo contrário, entende que cabe ao empregador garantir que o contrato reflita a realidade das funções exercidas.

Desvio vs. Acúmulo de Função: A Diferença que Pode te Salvar

Entender a diferença entre desvio e acúmulo de função pode significar a diferença entre uma pequena correção salarial e um processo trabalhista custoso. Embora ambas as situações envolvam funcionários exercendo atividades além do contratado, suas implicações legais são distintas.

  • No acúmulo de função, o trabalhador continua exercendo suas atividades originais e adiciona novas tarefas compatíveis com seu cargo. Por exemplo, um auxiliar administrativo que passa a controlar também o almoxarifado, mas mantém suas funções administrativas originais. Neste caso, ele pode pleitear um adicional salarial conforme previsto em convenções coletivas, mas não há mudança fundamental na natureza do cargo.
  • Já no desvio de função, o funcionário é transferido para atividades completamente diferentes daquelas para as quais foi contratado. Usando o exemplo anterior do vendedor que vira operador de caixa: ele deixa de exercer vendas para assumir uma função operacional diferente. Neste caso, o trabalhador pode exigir equiparação salarial com outros funcionários que exercem a mesma função ou reajuste para o salário compatível com o novo cargo.

A consequência financeira do desvio costuma ser muito mais severa. Enquanto no acúmulo o funcionário pode receber um percentual adicional sobre seu salário atual, no desvio ele pode pleitear o salário integral de outro cargo, além de diferenças retroativas desde o início da mudança.

Para complicar ainda mais, o artigo 483 da CLT permite que o empregado solicite rescisão indireta quando é obrigado a prestar serviços completamente alheios ao contrato. Isso equivale a uma “demissão por justa causa” aplicada ao empregador, obrigando-o a pagar todas as verbas rescisórias como se tivesse demitido o funcionário sem justa causa.

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As Consequências Financeiras: Quanto Pode Custar Esse “Quebra Galho”

Os valores envolvidos em processos de desvio de função podem ser devastadores para pequenas e médias empresas. Quando a Justiça do Trabalho reconhece o desvio, ela determina o pagamento das diferenças salariais desde o início da nova função, acrescidas de juros e correção monetária.

Vamos a um exemplo prático: uma auxiliar de limpeza contratada por R$ 1.320 (salário mínimo) passa dois anos exercendo funções de recepcionista, cargo que no mercado vale R$ 1.800. A diferença mensal de R$ 480, multiplicada por 24 meses, resulta em R$ 11.520 de diferenças salariais básicas. Adicione 13º salário proporcional, férias e FGTS sobre esses valores, e o montante pode ultrapassar R$ 15.000 — sem contar juros e correção monetária.

Mas o prejuízo pode ir além das diferenças salariais. A Justiça do Trabalho pode reconhecer dano moral quando comprova que o desvio causou sofrimento emocional, sobrecarga excessiva ou constrangimento ao trabalhador. Embora dependa da análise caso a caso, indenizações por dano moral em situações de desvio de função podem variar de R$ 2.000 a R$ 10.000, dependendo da gravidade e duração da situação.

A rescisão indireta representa outro risco financeiro significativo. Quando concedida, obriga a empresa a pagar todas as verbas rescisórias como numa demissão sem justa causa: aviso prévio, férias proporcionais e vencidas, 13º salário, FGTS com multa de 40%, além das diferenças salariais já mencionadas.

Além dos custos diretos, há impactos indiretos consideráveis: honorários advocatícios, custos processuais, tempo gasto em audiências e o desgaste na imagem da empresa. Sem contar que processos trabalhistas ficam registrados nos órgãos competentes, podendo afetar futuras contratações e a reputação empresarial no mercado.

Como o Funcionário Comprova o Desvio de Função

O ônus da prova em casos de desvio de função recai sobre o empregado, conforme estabelece o artigo 818 da CLT. Isso significa que cabe ao trabalhador demonstrar que exerceu funções diferentes das contratadas. Porém, não se engane pensando que isso torna difícil a comprovação na era digital, as evidências estão por toda parte.

E-mails corporativos são uma das principais fontes de prova. Mensagens onde o funcionário recebe orientações sobre tarefas fora de sua função, relatórios que ele elabora sobre atividades não previstas no contrato, ou comunicações internas que demonstram suas novas responsabilidades podem ser apresentados como evidência. Muitas vezes, os próprios gestores criam o histórico probatório sem perceber.

Registros internos da empresa também servem como prova. Planilhas de controle, sistemas de ponto eletrônico que mostram o funcionário trabalhando em setores diferentes, documentos assinados por ele em nome de cargos que não possui, tudo isso pode ser usado para comprovar o desvio de função.

A prova testemunhal costuma ser fundamental nesses processos. Colegas de trabalho que presenciaram as mudanças de função podem ser chamados para testemunhar, e seus relatos frequentemente são decisivos para o julgamento. A Justiça do Trabalho dá grande peso aos depoimentos de testemunhas que conviveram diariamente com a situação.

Registros fotográficos ou de vídeo, embora menos comuns, também podem ser apresentados. Um funcionário que documenta suas atividades através de fotos ou vídeos, prática cada vez mais comum nas redes sociais corporativas, pode usar esse material como evidência.

O que mais preocupa é que muitas empresas, inadvertidamente, criam trilhas documentais que facilitam a comprovação. Organogramas internos que mostram o funcionário em posição diferente da contratada, comunicados internos que o apresentam com novo título, ou até mesmo crachás identificando-o com cargo diverso podem se voltar contra a empresa.

Proteção Total: Como Blindar Sua Empresa Contra Desvio de Função

A prevenção do desvio de função começa com um plano de cargos e salários bem estruturado. Isso significa ter descrições precisas e detalhadas das funções de cada cargo, estabelecendo claramente quais são as responsabilidades, competências e limites de cada posição. Quando todos sabem exatamente o que devem fazer, fica mais difícil que desvios aconteçam “naturalmente”.

Os contratos de trabalho devem ser elaborados com máxima precisão nas descrições de funções. Evite termos genéricos como “outras atividades correlatas” ou “demais tarefas que forem solicitadas”. Seja específico sobre o que o funcionário fará, em qual setor trabalhará e quais são seus limites de atuação. Contratos vagos são convites para problemas futuros.

Sempre que houver necessidade real de mudança nas atribuições de um funcionário, formalize através de aditivo contratual. Documente a mudança, ajuste a remuneração se necessário e atualize os registros trabalhistas. Essa formalização protege tanto a empresa quanto o trabalhador, criando transparência na relação de trabalho.

A capacitação de gestores é fundamental para prevenção. Muitos desvios acontecem porque supervisores e coordenadores não compreendem as implicações legais de suas decisões operacionais. Treine suas lideranças para delegar apenas tarefas compatíveis com os cargos de cada subordinado e para identificar quando uma mudança necessita de formalização.

O setor de Recursos Humanos deve funcionar como agente de prevenção, acompanhando de perto as rotinas das equipes e prestando orientação contínua aos líderes. Estabeleça revisões periódicas das funções exercidas versus funções contratadas, identificando desvios precocemente para permitir ajustes antes que se tornem problemas legais.

Mantenha canais abertos para comunicação interna e feedbacks. Funcionários que se sentem ouvidos e valorizados têm menos probabilidade de buscar soluções judiciais. Além disso, essa comunicação permite identificar situações de desconforto com mudanças de função antes que se transformem em litígios.

Faça auditorias internas regulares. Revise contratos, compare funções exercidas com funções contratadas e corrija divergências imediatamente. É muito mais barato prevenir do que remediar depois de instalado o problema.

Não Deixe o “Jeitinho” Virar Prejuízo: Aja Antes que Seja Tarde

O funcionário “faz-tudo” pode parecer um ativo valioso hoje, mas representa um passivo trabalhista perigoso que cresce silenciosamente a cada dia. Como vimos ao longo deste artigo, a diferença entre flexibilidade operacional e desvio de função não está na boa vontade das partes, mas no cumprimento rigoroso da legislação trabalhista.

As consequências financeiras de um processo por desvio de função podem comprometer seriamente a saúde financeira de pequenas e médias empresas. Diferenças salariais retroativas, indenizações por dano moral e possível rescisão indireta representam custos que podem facilmente ultrapassar dezenas de milhares de reais, valores que poderiam estar sendo investidos no crescimento do negócio.

A implementação de práticas preventivas como contratos bem elaborados, plano de cargos estruturado e capacitação de gestores não apenas protege sua empresa de litígios, mas também promove um ambiente de trabalho mais justo e transparente, contribuindo para maior engajamento e produtividade da equipe.

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Entenda quando é considerado desvio de função e como se proteger de passivos trabalhistas milionários com estratégias preventivas.
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